terça-feira, 16 de março de 2010

Nordeste é vítima de violência simbólica na mídia


  • Por que o Nordeste continua sendo apresentado na mídia do Sul e Sudeste como território do passado?
A ideia do Nordeste estar sempre direcionado ao passado, à violência, ao atraso e ao fanatismo acompanha a região desde quando ela foi inventada. Houve um discurso posicionando o Nordeste no âmbito político. A noção de região é importante e tem algum reflexo da realidade geográfica local, mas há outros interesses também. O embrião dessa visão que aparece na mídia, hoje em dia, está ali, na invenção discursiva do Nordeste, mas ela permanece, tal a força que o discurso fundador tem. Naquele período, ou pouco antes, foi feita uma documentação da seca, com Euclides da Cunha, reforçando o discurso político, literário e jornalístico da época. Então, as pessoas falam do fanatismo e da pobreza. É interessante que os jornalistas enviados ao Nordeste se assustam quando chegam a Recife e encontram uma cidade talvez mais moderna do que São Paulo, justamente porque não era isso o que esperavam encontrar. Ainda hoje isso acontece também em relação às praias.

  • O Nordeste também ficou conhecido como território dos "coronéis"...
São elementos que estão muito presentes no discurso do Nordeste, como se fosse específico só dele. Há também fundamentação no discurso antropológico. A colonização do Nordeste se deu bem cedo, em cidades como Salvador e Recife, diferente do Sul e Sudeste, colonizações mais recentes. Diria que há um pensamento racista em relação a essa colonização recente, porque tem matriz na europeia, basicamente, e que embranquece o Sul e São Paulo. Enquanto que o Nordeste fica sendo visto como o local do caboclo, daquela colonização primeira do português e do africano. Esse contraste demonstrava, naquela época, uma superioridade devido à civilização branca.

  • Esse discurso é incorporado pelos próprios nordestinos?
O objetivo da minha tese era entender o motivo da discriminação e do preconceito contra o Nordeste em termos de uma hipótese. A hipótese que levanto é de que a discriminação não é só discursiva e geográfica, mas uma forma de violência. Utilizo o conceito de violência simbólica, lançado por Bourdieu, no qual o pensador francês mostra que a violência simbólica não pode ser mensurada fisicamente. É uma forma mais sutil de ver o mundo do que a dominação em si, e ocorre com o consentimento do dominado, como ressalta Bourdieu, citando, como exemplo, a intimidação. É um consentimento inconsciente. Existe uma série de instituições de muito poder no País, revistas e jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro e toda uma mídia. Por ser uma violência simbólica, o dominado acaba consentindo. Há muitos casos de nordestinos que confirmam esse discurso, que é um risco que se tem dessa violência.

  • Pode ser sentido quando se sai do Brasil...
Sim, porque nessas migrações, o outro acaba sendo visto como estereótipo. Por exemplo, no contexto mais global, o brasileiro fora do País assume estereótipos, como sensualidade, futebol e, para ser aceito, acaba aderindo àquela imagem de forma estratégica ou não. Às vezes, a pessoa é levada a aderir a isso. No caso do Nordeste, o que percebo é o riso em relação ao sotaque, expresso no que chamam jeito bonitinho de falar cantado. É comum as pessoas assimilarem essa visão. Por que o falar do pernambucano, do paraibano e do cearense é cantado? É possível perceber, em estudos linguísticos de qualquer fala, a prosódia, elemento que dá ritmo à fala e acontece com qualquer língua.

  • O que é possível ler nas entrelinhas deste discurso pejorativo em relação aos nordestinos?
Para se inventar como potência moderna, no caso, o Sudeste, precisa do outro, construído como não-moderno, para poder se marcar como moderno. O que está por trás dessa discriminação é a construção de uma modernidade. Teóricos que estudam a modernidade, tanto na Antropologia quanto na Sociologia, podem perceber que esse discurso da modernidade é fundado no princípio da desigualdade. Sempre requisitaram pobres, analfabetos, indígenas, não-modernos para marcar os evoluídos, modernos que têm como destino o progresso. A necessidade de falar tanto dessa região é para se constituir como moderno.

  • Os discursos pejorativos em relação ao Nordeste tentam mostrar o nordestino como um povo predestinado ao atraso, enquanto o sulista, à modernidade?
A ideia de modernidade está vinculada ao discurso oficial à vitória sobre a religião, tem um secularismo muito forte. Deixar de acreditar no destino para acreditar na ciência, na previsão do tempo. A forma como a religiosidade aparece neste discurso da mídia, é estimulada para ferir, legitimar uma ideia. Você é brasileiro porque sempre está reafirmando esse pensamento, sendo que é nesta repetição que a identidade vai existir. A repetição do discurso histórico de pobreza, opressão, fome serve para manter o status quo e o fanatismo e a religião entra nos dois.

  • Por que o Nordeste não conseguiu incorporar o discurso da modernidade brasileira?
Em termos da visão da mídia do Sudeste, o Nordeste não incorpora esse moderno, esse progresso, porque é uma terra fadada ao atraso. Se o Nordeste fosse reivindicar um discurso dessa modernidade tardia, deveria pensar um outro modelo. É o que penso um pouco na tese, já que a modernidade é pautada numa ideia de desigualdade, e essa desigualdade no Brasil passa pelo divisão Norte/Sul, então o discurso do Nordeste não poderia ser o mesmo do Sul.

  • Qual seria o outro discurso...
No quadro "Os Retirantes", existem pessoas que não estão muito vivas, mas por outro, não estão mortas. Estão andando, migrando em busca de água, representando uma ideia anti-moderna. Mas, para o fracasso do moderno, essas pessoas estão sobrevivendo. Em Vidas Secas isso é muito forte. A vida não é uma garantia, porque a seca está sempre na espreita. A minha ideia é pensar o Nordeste sempre neste limiar entre vida e morte, justamente aquele momento em que se tem consciência do que está acontecendo. Esse limiar permite pensar a vida em outras bases. A questão seria abraçar o discurso do intervalo, nem vida, nem morte. Porque a vida pensada pela modernidade é desigual; também não é morte, mas esse ínterim que é a ideia da sobrevivência.

  • Desde quando é possível observar que o Nordeste começou a mudar a sua realidade?
A partir da própria democratização do País, com o fim do coronelismo. O Ceará mudou com a administração do Tasso Jereissati, o primeiro democrata que aparece para governar o Estado. Agora, o desenvolvimento ainda é questionável porque é pautado nessa lógica neoliberal, moderna, de um desenvolvimento para poucos. O próprio turismo, pensando sem desenvolvimento sustentável, cria todo um complexo hoteleiro quando as pessoas vivem em condições ainda miseráveis, abrindo espaço para o turismo sexual e exploração dos trabalhadores. Quando não se tem o que comer, há muito pouco, às vezes, o que escolher. Há uma necessidade de construção desse moderno. É claro que essa descrição do Nordeste, como lugar pobre, serve a algum interesse.

  • Por que o Nordeste é estereotipado como sendo o paraíso do atraso?
Realmente ele é construído na mídia do Sudeste como paraíso do atraso. É uma questão de dominação, em outras palavras, há uma violência sendo praticada através de um discurso dominante, no Sudeste contra o nordestino, representado por essa imagem do atraso que é usada contra ele. No caso do Nordeste este atraso é colocado de uma forma perversa, sem perspectiva de melhoria. Diferente do Haiti, é mostrado com uma postura otimista, positiva, de que a ajuda vai melhorar. Para mim, existe uma violência sendo praticada. A própria noção de subjetividade é marcada pela noção de violência.

  • Como o Nordeste elegeu um presidente?
Acho que existe uma conjuntura mundial com algumas minorias se sobressaindo, primeiro negro eleito nos Estados Unidos, mulheres no poder, como na Alemanha. Os reflexos são sentidos no País, é o caso do Nordeste, com Lula, ele se modifica um pouco. Há algo forte, o carisma que foi usado de maneira proativa, provando que foi um governo que promoveu o desenvolvimento. As minorias e o Nordeste não são exatamente o que as elites afirmam sobre elas.

  • Que discurso seria condizente com a realidade atual do Nordestino?
Um discurso que não fosse pautado nessa ideia de modernidade e de exclusão. Um olhar que tentasse entender o desenvolvimento e a pujança do Nordeste a partir dele mesmo e não do outro.Como a arte trabalha o Nordeste? Ela denuncia ou reforça o estigma visto na mídia?Essa é uma questão bem delicada para se tratar. A arte, no caso a moderna, é uma forma de retratar o cotidiano, diferente do jornal. Há uma ruptura, um deslocamento com esse olhar do que acontece no cotidiano. Algumas obras podem ser encaradas como denúncia, como é o caso de Graciliano Ramos, na sua forma diferente de encarar o real. Dessa forma, a meu ver, a arte não reforça o estigma.

7 comentários:

  1. Francisco, obrigado!!

    Só um detakhe importante, e faço questao de ressaltar, a tese nao é de minha autoria. Foi publicada no Diario do Nordeste no caderno "opniao" do dia 13/03

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  2. ola!! tdo bem? tá legal prof. o texto ai, entra tbm no meu blog vlw!! www.lizonfly.co.cc e sobre relacionamentos e temtbm tem esse outro www.relacionamentosenamoros.arteblog.com.br depois eu mando o outro tbm!! vlw!!

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  3. Na verdade, essa perspectiva se encontra no livro, A invenção do Nordeste do professor Durval Muniz de Albuquerque Junior baseado na sua tese de doutorado defendida em 1994. Até mais.

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  4. Olá,

    Comecei a escrever minha tese de doutorado em educação, onde estudo a violênica simbólica num espaço educacional normatizado e em outro não formal, gostaria que sugerisse-me livros, sites, já que ainda estou na fase incial. parabéns pelo trabalho!

    Eliana

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  5. Eliana, você poderia ser mais especifica no seu pedido. Se quiser, pode entrar em contato comigo pelo e-mail pessoal que esta no perfil. Ficarei feliz em ajudá-la !! Academicamente, tenho apenas graduação ( e vontade de ingressar no mestrado em breve), mas tenho uma boa vivencia de sala de aula e de edeucaçao.

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  6. gostei muito do texto. embora, não concorde com a mídia. me refiro a mídia e não ao texto, só pra esclarecer.

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